Médico da Unesp repercute estudo em relação à distribuição dos médicos especialistas e generalistas no Brasil
18/03/2023
Médico da Unesp repercute estudo em relação à distribuição dos médicos especialistas e generalistas no Brasil

Medicina “tradicionalmente” era uma profissão masculina, como, aliás, tantas outras, como a engenharia e o direito, embora nada tinha a ver com características ou exigências da profissão em si, mas sim com o papel socialmente destinado às mulheres em sociedades machistas e misóginas

 

Um amplo relatório com dados concretos em relação à distribuição dos médicos especialistas e generalistas no Brasil. Assim podem ser classificados os números da Demografia Médica no Brasil 2023. O documento é fruto do Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

Em entrevista à Gerência de Comunicação, Imprensa e Marketing (GCIM) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), o Médico Colaborador do Hospital e Professor Aposentado da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB|Unesp), Dr. Antonio Luiz Caldas Jr, repercute os números do estudo.

 

De que forma os resultados da Demografia Médica no Brasil 2023 podem contribuir com o Sistema Único de Saúde (SUS)?

A Demografia Médica vem se tornando uma ferramenta de excepcional valor para o planejamento de diversas ações do SUS, desde seu lançamento original há pouco mais de uma década, conduzido pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, sob a coordenação do Professor Mário Scheffer. Havia no Brasil o mito de que tínhamos um grande contingente de médicos, resultado de uma visão emanada dos grandes centros urbanos, de Brasília e das grandes capitais da região sul/sudeste. Mesmo com a rápida expansão da formação de médicos nos últimos anos ainda estamos 43% abaixo da média dos países avaliados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E formamos menos profissionais do que a média. O extenso e minucioso trabalho dos pesquisadores da “Demografia Médica” vem revelando o que se passava na totalidade do Brasil, chegando aos rincões, às áreas periféricas das metrópoles, aos milhares de micro-municípios, onde a desassistência e a escassez de profissionais é uma triste realidade. Na maioria dos países do mundo, especialmente os desenvolvidos, a saúde é considerada um dever e uma política de Estado cujo desenvolvimento não pode estar entregue à lógica de mercado. Para assegurar a universalidade, equidade e integralidade do cuidado almejada pelo SUS é preciso planejar, intervir de forma organizada e para tal o primeiro passo é ter uma acurada apreciação situacional, que envolve, dentre outros particulares e com destaque a formação e a oferta de trabalho de profissionais médicos: quantos e quem são os médicos disponíveis no Brasil? Quais suas especialidades, distribuição, expectativas? Quantos e como estão sendo formados em graduação e na residência médica? Como este quadro vai evoluir nos próximos anos e décadas? Estas são algumas das indagações que a grandiosa obra Demografia Médica no Brasil tenta responder.

 

O crescimento de médicos no País nos últimos anos é fruto do aumento de novos cursos de medicina?

É evidente que abertura de novos cursos e de vagas de medicina são a “causa imediata”. Basta dizer que se nenhuma nova vaga for aberta (o que é improvável), teremos mais de um milhão de médicos no Brasil no ano de 2035.

Mas é importante entender as causas básicas, ou seja, aquelas que determinaram ou facilitaram a abertura destas novas escolas. Valia um pouco falar aqui do programa “Mais Médicos para o Brasil”, estratégia do governo federal para enfrentar a carência e a má distribuição de médicos no Brasil. O programa, que se transformou em lei, ainda em 2013, se fundamentava em três eixos que deveriam caminhar harmonicamente, aproximando os profissionais das necessidades do SUS:   1. a expansão de vagas e reorientação curricular dos cursos de Medicina, incluindo a abertura de novos cursos; 2.expansão e reorientação da residência médica; ambas medidas com foco na atenção básica; e, enquanto isso caminhasse, 3. A contratação emergencial de médicos, diminuindo as carências e desigualdades regionais e áreas de maior vulnerabilidade sanitária e social.

Infelizmente, porém, programa desta envergadura logo de seu início foi objeto de uma campanha de fake-news e desinformação da opinião pública e dos próprios profissionais de saúde. O governo federal abriu os editais para contratação de médicos, com salário diferenciado, para atuar preferencialmente nas áreas desassistidas: Amazônia, populações indígenas e ribeirinhas, municípios de poucos recursos, periferias de áreas metropolitanas.

Os primeiros editais priorizavam médicos brasileiros, mas muitas das vagas não foram preenchidas. Assim foram contratados médicos estrangeiros incluindo argentinos, espanhóis, portugueses e, sobretudo, cubanos, em decorrência de um convênio entre os governos brasileiro e cubano, com intermediação da Organização Pan-Americana de Saúde, a OPAS. Mais da metade dos quase 20.000 profissionais que chegaram a atuar no “Mais Médicos” era cubana.

Ou seja, o contingente do “Mais Médicos”, não chegava a 4% do total de médicos que atuavam no Brasil em 2018, mas eram de absoluta relevância na cobertura de populações e localidades que nunca antes viram a presença continuada deste tipo de profissional. Lamentavelmente prevaleceu o ódio, a intolerância e a difamação de fundamento político e até eleitoreiro. Se chegou a dizer que os tais “cubanos” nem médicos eram, e sim técnicos em saúde de nível médico; ou o pior, que eram “agentes políticos cubanos infiltrados em território brasileiro”. Pasmem, mas este tipo de asneira foi repetido por professores universitários e alguns órgão de classe da medicina.

Uma irresponsabilidade que acabou por desestruturar o Programa. O resultado é que dos três pilares do programa, há pouco mencionados, subsistiu apenas, com vigor, a abertura desordenada de escolas médicas e, o que é mais grave, em regiões onde a alta

 

A pesquisa aponta que as mulheres serão maioria na profissão a partir de 2024. Na sua avaliação, de que forma esse dado impacta no Sistema de Saúde?

Muito positivamente. Se as mulheres são maioria na sociedade, por que não poderiam sê-lo dentre a categoria médica? Nada melhor que possam contribuir com sua competência e dedicação ao exercício de nossa profissão. Não há nenhum argumento que justifique o contrário.

Mas é bom lembrar que a medicina “tradicionalmente” era uma profissão masculina, como, aliás, tantas outras, como a engenharia e o direito. Isto nada tinha a ver com características ou exigências da profissão em si, mas sim com o papel socialmente destinado às mulheres em sociedades patriarcais, ou falando mais diretamente, machistas e até misóginas, que reservavam às mulheres ocupações tidas como “de menor valor econômico ou social”.

Apenas na segunda metade do século XX as mulheres passam a frequentar de maneira mais expressivas escolas médicas. Difícil e lenta trajetória. Basta dizer que, em 1970, quando iniciei meu curso, as médicas representavam apenas 15% da categoria. Este quadro foi mudando paulatinamente e pude testemunhar isto como professor, pela crescente presença feminina dentre nossos estudantes de medicina. Isto propiciou que o crescimento do número de médicas tenha sido o dobro do gênero masculino, na última década. Se em 2009 60% dos profissionais médicos eram do gênero masculino, em meados da próxima década esta mesma porcentagem será de mulheres.

Não há razão para diferenciar o trabalho médico, em função do gênero de seu prestador, mas infelizmente a discriminação subsiste e, a exemplo das demais ocupações, a remuneração da força de trabalho feminina é inferior à dos homens, o que é uma flagrante injustiça, que se almeja corrigir em breve. Basta dizer que os rendimentos médios das mulheres médicas eram um terço inferiores aos dos homens.

É curioso notar que esta visão “masculinizada” da profissão, mesmo com o avanço da presença feminina, acaba por influenciar a escolha de especialidades, quase sempre por influências da associação destas com o “papel social da mulher”, como se houvesse especialidades mais “apropriadas à natureza feminina”, o que em si é um despropósito. Vejamos os exemplos da Dermatologia e da Pediatria com grande proporção de especialistas mulheres (80% e 75% respectivamente), como se, ridiculamente, cuidar de crianças ou da pele “fosse coisa de mulher”! Ao contrário, os homens dominam as especialidades cirúrgicas, à exceção da ginecologia e obstetrícia. Afinal a “maternidade” seria um assunto feminino. Ou não? Mas estamos avançando, a exemplo das demais frentes da luta pela emancipação feminina e a igualdade de gêneros.

 

Os números da Demografia Médica apontam uma desigualdade na distribuição de médicos pelo País. É possível, com base nos números da pesquisa, rever estratégias nesta distribuição? E de que forma os Estados e municípios que possuem baixa concentração de médicos podem mudar esse cenário?

Esta desigualdade na distribuição de médicos pelo território nacional é o que se aponta como mais grave. Se o número médio de profissionais por mil habitantes é baixo, a disparidade é completa quando consideramos as diversas regiões e microrregiões do Brasil e os diferentes estratos populacionais de municípios, seja na quantidade de profissionais seja nas diferentes especialidades. Isto para não falar do acesso das diferentes populações aos serviços prestados, recursos tecnológicos de diagnóstico e terapêutico e outros. A Demografia Médica permite constatar, por exemplo, que a disparidade da “força de trabalho cirúrgica” chega a ser seis vezes superior, quando comparamos o Distrito Federal e São Paulo a estados das regiões norte e nordeste.

Desigualdades são uma marca de nossa sociedade, como em todo mundo. Mas nos casos da saúde elas são mais perversas e desumanas. A título de exemplo, há desigualdades no acesso a alimentação e ao vestuário. Não estou falando nem dos famélicos ou dos esfarrapados. Mas de que é possível suprir as necessidades humanas mesmo na disparidade. A segurança alimentar pode estar garantida num prato de comida a R$ 20 (ou até de R$ 1, no Bom Prato) como numa daquelas refeições consumidas pelos “craques da seleção” folheadas a ouro à fabulosa “bagatela” de R$ 3 mil. De igual forma as camisetas de 50 ou 500 reais cumprem o mesmo papel de atender à necessidade básica do vestir-se. Na saúde, porém, este raciocínio não é cabível pois a uma dada necessidade de saúde deveria ser eticamente e legalmente assegurada a mesma elucidação diagnóstica e o mesmo tratamento. Este é o fundamento da saúde como direito universal, sob o princípio da igualdade. Para uma mesma necessidade de saúde deveria ser assegurado o mesmo cuidado pelo SUS. É o que rezam a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde, de 1990: acesso aos serviços em todos os níveis de assistência; integralidade de assistência, ou seja, um conjunto de cuidados exigidos para cada caso em todos os níveis do sistema, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.

Infelizmente, com avanços e retrocessos estamos longe disso. E uma das causas centrais é a disparidade na oferta e no acesso às ações e serviços de saúde, seja do ponto de vista geográfico, seja sobretudo social.

De 2010 a 2023 o Brasil passou de 1,6 para 2,6 médicos por mil habitantes. Embora o número de médicos tenha mais do que dobrado nos últimos 20 anos, ainda estamos distantes da disponibilidade médica de outros países.

Pior ainda é a disparidade na distribuição. A média é 2,6 médicos por mil habitantes. Quando pensamos em desigualdade de distribuição tendemos a comparar os extremos geográficos, como por exemplo o Distrito Federal (5,5) e o Pará apenas 1,2. Nas capitais, Vitória (ES)- 14,5, São Paulo (SP) – 6,3 e Macapá (AP) – 2,1.  No interior de São Paulo – 2,93, no interior do Amazonas – 0,21. Ou seja, 14 vezes menos.

Mas vejamos que o problema não é apenas ou principalmente a distância geográfica, mas sim a social. Basta dizer que nas capitais este número chega a 6,1 profissionais por mil habitantes e no seu entorno (regiões metropolitanas, exceto as capitais) cai para apenas 1,1. Chocante disparidade num espaço tão reduzido. Nos interiores são 1,8 profissionais por 1000 habitantes, sendo que nas “1.250 cidades com até 5 mil habitantes, onde vivem 2% da população total do país, estão apenas 0,3% dos médicos”, conforme consta do texto.

O pior pode estar para acontecer: a expansão da formação de profissionais, sem políticas claras de formação e redistribuição, poderá acirrar o processo de concentração. É o que aponta o documento. Especialmente se considerarmos a natureza privada da maioria das vagas criadas e a falta de uma política assertiva de Residência Médica nos últimos anos, com uma sub oferta de vagas diante do crescimento acelerado de graduados. E mais, a maioria dos atuais médicos residentes tem a expectativa de dedicar sua atividade profissional ao setor privado de saúde, embora majoritariamente estejam recebendo sua formação especializada em serviços do SUS.

É necessário, pois, retomar alguns princípios e diretrizes definidos pelo Programa Mais Médicos. Não se trata de reeditá-lo, dado que dez anos se passaram e o panorama hoje é outro, como revela a Demografia Médica.

Este conjunto de medidas abrange uma ampla gama de ações a começar pela atualização permanente das Diretrizes Curriculares aproximando a formação do médico e outros profissionais das necessidades de saúde da população e das diretrizes estratégicas do SUS. Como alcançar isto num momento de expansão desordenada, concentracionista e privatista da Escola Médica? Onde o próprio SUS é desprestigiado pela maioria de estudantes e médicos residentes?

Se quisermos promover a redistribuição de profissionais é necessário criar condições adequadas de trabalho, destacando-se a constituição das redes de atenção à saúde em unidades com instalações e equipamentos adequados a cada nível de assistência; equipes de saúde bem constituídas e motivadas. As carreiras profissionais e as políticas salariais devem ser atraentes, estimulando a presença de profissionais naquelas localidades de onde dele se mais necessita; onde as condições de vida são mais adversas e se busca a equidade social, inclusive na saúde.

Tais iniciativas nunca poderão ocorrer pelas “forças do mercado”, que buscam a lógica da lucratividade. Só uma ação ousada, política e socialmente sustentada, poderá assegurar os recursos necessários a isto. Especialmente iniciativas e recursos federais, já que os pequenos municípios, os 1.250 que mencionamos, dificilmente terão condições para fixar estes profissionais. É necessário promover a regionalização da prestação destes serviços, criando oportunidades de trabalho para os médicos de caráter regional. Por exemplo, oferecendo ao médico de um pequeno município oportunidades de trabalho em outros pontos da rede de atenção à saúde, como prontos socorros e hospitais, onde possa diversificar seus ganhos a atividades profissionais.

Estes são desafios estratégicos monumentais, que implicarão na mobilização de gigantes recursos financeiros. Como fazê-lo num país, como o Brasil, que inverte por habitante, um terço da média de países da OCDE? Há muito que caminhar, mas é possível e necessário. Fora do SUS não há saída e a base de tudo são boas informações como estas emanadas da edição 2023 da Demografia Médica no Brasil.


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